quinta-feira, julho 10

A importância de se chamar... Abel!

O desafio "PASSA-O-TEXTO-A-OUTRO-BLOGUEIRO-E-NÃO-AO-MESMO", tem o seu regulamento no blogue do ÿpslon - 20 de Maio.
Pretende-se "construir dois textos com alguma coerência, seguindo dois fios condutores lógicos e um estilo livre. O início dos dois textos é o mesmo, mas cada história será escrita por pessoas diferentes, evoluindo assim de forma distinta. Cada texto será composto por 10 parágrafos (ou 10 pedaços de texto) escritos por 10 pessoas que possuam um blogue" (Pinguim).
O "conto" que daqui sair seguinte foi iniciado pelo ÿpslon, continuado pelo voyager, Mário, Zeh, Will, Pinguim, Luís Galego, Jasmimdomeuquintal e Rocket, sendo que este último, teve a gentileza de me convidar para encerrar a história.



Aquela manhã de nevoeiro disperso estava a acordar aos poucos. Tal como aqueles olhos que iam abrindo de mansinho, a medo, e ficaram focados na janela gigante que dava para a praceta onde permanecia uma estátua de um qualquer marquês. Pôs-se de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, e levantou um pouco a cabeça. Torceu todo o corpo para a esquerda e só então conseguiu lembrar-se do que tinha acontecido.
ÿpslon - http://www.vitaminay.blogspot.com/

As imagens começaram a surgir-lhe na mente como num filme. A viagem até aos arredores da cidade. O prédio já extremamente degradado, vizinho dos sem-abrigo deitados pelo chão, naquela rua apática e sombria. O apartamento do 3º direito e a primeira impressão da Delfina, senhora tão afável e generosa. E a razão que o trouxe ali. Os flashes. Episódios quase surreais que a sua memória queria apagar, mas a sua consciência teimava em fazer virem à tona. Aquela humilde personagem especada à sua frente, franzina e com ar tão agradavelmente maternal, parecia realmente a personificação da solução para os seus problemas e devaneios recentes. Como as aparências iludem…
Voyager - http://www.life-from-inside.blogspot.com/

O Sol continuava a subir iluminando lentamente a rua ao fundo, a praça, o prédio, a sala, a cara e também a mente de Abel que recuperava o seu equilíbrio e via-se gradualmente livre daquele inebriante zumbido sensorial. À esquerda, no canto escuro da sala, numa poça de vermelho-vivo como pano teatral, revelava-se, subindo na luz matinal, uma cena surreal: Ali jazia a Sra. Delfina, sem roupa nem vida, com um punhal ritual espetado no peito. Abel encontrava-se surpreendido, aterrorizado, abismado, congelado. Ciente do impacto causado, a sádica luz decidiu continuar a torturá-lo e subiu ainda mais um bocado. Na parede branca, da escuridão, a vermelho sangue surgia: "Não te livras de mim assim" por baixo assinava: "Caim"
Mário - http://www.omeuoutroblog.blogspot.com/

A memória de Abel recua quatro anos num segundo, altura em que pela primeira vez ouvira aquele nome, desenhado pelos lábios de uma atraente rapariga “Caim, espera, estou a chamar-te há horas – não me ouves?” que, não esperando por uma resposta, apressa o passo até o alcançar e o beija com um fervor desconhecido, lábios nos lábios, língua na língua. Abel sente-se desorientado, no presente e há quatro anos, confuso pelo cheiro do sangue espalhado naquela sala e pelo perfume do cabelo daquela rapariga que o trata por um nome que não é o seu. Levantando-se lentamente, apercebe-se das mãos ainda amarradas e observa, com a cabeça a latejar, a sala em que Delfina agora jaz inerte, procura no nevoeiro que é a sua mente memórias que o ajudem a perceber a cena com que se confronta, mas tudo o que recolhe são os já habituais flashes de luz e cor, sensações de raiva e impotência que lhe consomem as energias do corpo e que o forçam a procurar apoio numa das cadeiras que ainda se mantêm em pé por entre confusão que reina na sala. Esgotado, senta-se desconfortável enquanto se apercebe do sangue espalhado pelo próprio corpo e, sem saber identificar se o vermelho é seu ou apenas parte da sala ensanguentada, fecha os olhos e com a escuridão sente regressar novamente o perfume delirante do cabelo e daquele beijo apaixonado, enquanto mãos suaves mas firmes se aproximam por detrás dele, aliviam os nós que lhe amarravam as mãos e, por entre a sensação inebriante que preenche aos poucos os seus pulmões lhe acariciam as costas e o pescoço, por entre beijos lascivos, e lhe segredam aos ouvidos: “Caim, amor… está feito!”.
Zeh - http://www.manualdoserhumano.blogspot.com/

Estas palavras transportam Abel àquele dia de há quatro anos antes. Àquilo que, na altura, lhe pareceu uma incrível coincidência. E depois o efeito envolvente do perfume de Carmen, a forma como aquele aroma lhe abrasava o sangue, a conversa fluente que o arrastou para uma noite que seria a primeira de muitas... As mesmas noites em que foi percebendo que Carmen não era uma mulher vulgar. Na verdade, estava bem longe de o ser...
Will - http://looking-for-grace.blogspot.com/

E realmente Carmen nunca poderia ser uma mulher qualquer; só uma mulher muito especial o conseguiria levar ali naquela noite e em tantas outras, a ele que pertencia a um “outro mundo”. Talvez daí a confusão entre os dois nomes, Caim e Abel, as duas faces do seu “eu”...E toda a simbologia daquela cena, do sangue, das mãos atadas o fizeram pensar em castigo, castigo por ser diferente...
Pinguim - http://wwwdejanito.blogspot.com/

Um dia, cai ao chão, apodrecido, e sente que ela lhe faz falta. Sensação pavorosa. Sentir a perda de alguém. Olhar à volta e não entender a ausência. Dias partidos um a um. Dói-lhe nas veias. Antes sofrer a raiva e o sarcasmo. A saudade é bastante! Renova a decoração do apartamento e esconde as fotos, mas não. Não adianta. Sente a solidão percorrer-lhe a espinha. Dorme mal, passa metade da noite de olhos abertos, no escuro, como quem começa a exercitar-se para a morte. Horas insuportáveis. Sofreu muito, esteve quase ás portas da morte, ora se sentindo destruído, ora rejuvenescido a seu lado, em cada espasmo junto dela. Mas nem por um só momento arrependido. Sabe que ela não é perfeita…mas com ela aconteceu um Outono dourado, entre lábios e lábios toda a melodia era deles, uma vida em grande, intensa, e um mundo de aparato. Tem que viajar. A belíssima Vila que há tanto ansiava por conhecer, acolhe-o com requinte. Nas brumas dos atalhos por onde anda roçam olhares de enternecimento, que espreitam a sua angústia rouca de viajante nocturno, ou, numa circunspecta provocação, o seduzem, esgares femininos que soltam cirúrgicos recados. À noite, a música ecoa na margem do rio, saboreiam-se canções de cabaret ao abrigo da chama colorida dos candeeiros, o vinho tem travo adocicado, de um verde pálido, como um lago antes da tempestade e há amantes que dançam. Nestes lugares imersos, de toques e archotes, há sempre um banco num recinto, e alguém de conversa delicada. Acorda entre braços de mulheres, desgrenhado, em quartos com vista para a dor. Mas o que é deveras real é que ela partiu sem aviso para um qualquer lugar. Onde procurar? E se a encontrar, o que perguntar?
Luís Galego - http://infinito-pessoal.blogspot.com/

Na sua dor Abel destruía-se, imaginando-a feliz nos braços de outro homem, dizendo e vivendo com outro aquilo que, no Outono da vida, julgara ser só dele. Não foi por acaso que foi parar àquela vila, como ela lhe dizia muitas vezes “Abel, meu querido, na vida não há coincidências”. Recorda agora como as suas frases e manifestações de uma fé, quase infantil, o faziam sorrir, contudo, por respeito aos seus sentimentos ficava com um ar sério. Mal sabia ele que ela fingia igualmente que acreditava nele; os seus olhos sempre foram mais transparentes que a alma dela.
O que será feito de Cármen? Numa vila junto ao mar ela procurou enganar os dias que compõem os anos. Pensa muitas vezes em Abel “será que alguma vez ele chegará a saber porque partiu?”
Não foi ausência de amor nem o tédio o que a fez fugir, foi acima de tudo o medo, medo de não conseguir preservar algo, que de tão grandioso só poderia ter um fim desastroso. Cármen não tinha palavras para lhe explicar esta sensação, ele era demasiado pragmático para a compreender.
Saberá Abel que Cármen é uma sombra? Perdeu a conta ao número de homens com quem já dormiu, em cada um deles julga encontrar um sinal, um vestígio de Abel. Porém, apercebe-se que se um tem as mãos parecidas com as dele, o acariciar é tão diferente que lhe chega a dar asco; outro até pode ter o olhar tão profundo que sente ver vestígios de Abel, mas ao acordar compreende que não passou de uma ilusão da miopia, do álcool ou da escuridão da noite. A maior dor foi quando encontrou, no bar da margem do rio, enquanto passavam as músicas de cabaret, um homem com uma voz igual à de Abel, tão igual que o sangue se lhe gelou. As palavras que saíram daquela voz foram tão desagradáveis que aquilo só poderia ser sacrilégio.
Continua naquela vila, variando entre o olhar no horizonte, durante o dia, a bebida no bar junto ao rio durante a noite e o acordar com um homem diferente na sua cama. Foram tantos que de manhã apenas se pergunta “o que será que vi de Abel neste homem?”. E pela enésima vez procura no recôndito do seu cérebro a recordação do cheiro de Abel. Esse é insubstituível!
Jasmim - http://jasmimdomeuquintal.blogspot.com/

Abel bem trocaria, por outro cheiro qualquer, o vento fétido em brasa que lhe lhe esmagava o rosto. Deitado numa poça de pavor, tremia diante do enorme lagarto que lhe retirava, à chicotada, a pele do rosto com a língua afilada que saía colubreante da boca da largura duma gaveta. Só lhe via a cabeça, gigante como uma aparelhagem antiga.
A dor das golpeantes lambidelas foi substituída por mais um shot de terror, ao fixar os assassinos olhos do monstro, que entreabria os beiços de saliva gelatinosa, desvendando uns dentes criados na mente de um fabricante de giletes...
A proximidade do seu fim cerrou-lhe os olhos, mas ao ouvir um violento arrastar de enorme massa pelo poeirento soalho, abre-os, para ver o monstro recuar, urrando de dor aos sacões, como num filme de dinossauros a preto-e-branco. Rodeava-lhe o pescoço uma enorme coleira de fibra de carbono, e era ela que Abel sentia como a causa da tamanha agonia que via possuir o lagarto de três metros e meio que, vários passos já ao longe, se deixava avaliar.
Da sombra saiu um homem, de braço em riste. Tranquilo, calmo e elegante, na mão exibia um controlo remoto. Abel ouviu a voz suave de Caim antes de lhe ver o rosto, imerso ainda na penumbra da sala:
— Coleira electrónica. Todo o cônjuge devia ter uma ...— O lagarto, um Dragão de Comodo, jazia agora imóvel e exaurido, e a sua respiração ameaçadora passou a um pesado cicio aos pés daquele homem que, com o seu requinte, invadia, em contraste, a sala abandonada pelo estuque de décadas.
Com o antebraço, Abel limpou as gotas de suor que lhe dificultavam a visão de Caim, a três metros de si.
Petrificado, de sorriso curto, pela luz de néons longínquos que entravam pela enorme janela, caía-lhe um fato Yohji Yamamoto e pregavam-no ao chão uns Gucci 319, displiscentes, a empoeirarem-se com a película de estuque que flutuava na bruma de néon que a janela exalava.
Foda-se...porque ficaria sempre o requinte para os vilões?... Lembrou Abel... Os SS foram vestidos por Hugo Boss...
— Sabes porque te encontras colado a esse chão, Abel?... É no que dá navegares no lixo mental que o homem vulgar confude com espírito. E deixaste-te corromper pelo mundo barato das emoções... como por exemplo, esse... amor...
Um sacerdote de Hórus passava atrás de Caim, agora em silêncio. Transportava, de braços dobrados junto ao tronco, uma salva na qual brilhava um punhal. Seguia-o um grupo de gente escura pela sombra no qual uma mulher se debatia amordaçada... Abel, ofegante, jurou reconhecer Delfina.
A osga gigante deixou-se abater por uma uma certa sonolência e o fedor da sala continuou...
... violentamente insuportável...
Rocket - http://rocket-slavetotherhythm.blogspot.com/

Ergueu o pescoço na perpendicular e reconheceu-lhe as feições. Jacinta, pensou. As parecenças com Delfina eram de facto, impressionantes.
Num violento arrombo, Abel é arrastado para as noites de veludo, quando o suor de Jacinta lhe lavava o corpo sedento. Continuou por alguns momentos mergulhado em delírios, até que o ranger do soalho apodrecido se fez notar.
- Mais uma das tuas putas! - Clamou Caim enquanto exibia a mulher como se de um troféu se tratasse.
- Deixa-a... peço-te, desta vez deixa-a ir.
- Diz-me Abel... se partilhámos o mesmo cordão umbilical porque insistes em negar-me? - Sem aguardar resposta, deu três passos em direcção à janela e observou o ar hermético com precisão.
- Sabes Abel... houve alturas em que questionei a minha existência, tão só, para que não sofresse a tua distância. A saudade é como um cancro, destrói em surdina. - Balbuciava o abandono. Rodou o corpo e fixou os olhos no chão. Tomou o punhal para si e num ápice, cravou-o no peito da mulher.
-Matá-las-ei! Todas! Ouviste? Todas!
O corpo mudo de Jacinta tomba violentamente no soalho. Um bando de espectros ululam em coro e apressam-se a rodear a carcaça. Assistem em comunhão à tragédia anunciada.
Caim atira o corpo contra a parede e deixa-se cair lentamente... Consumado, sorri e arregala os olhos de regozijo.
Devaneios simbióticos sufragam a heterogeneidade: Abel e Caim. A bipolaridade óbvia personificada.
Abel dobra os joelhos e arrasta-se de forma penosa até Jacinta. Afaga-lhe o rosto delicado com as costas das mãos e puxa-a para si. Jacinta era afinal Cármen, que era Delfina, que era Cármen, e que fora Maria e Laura e Amélia e todas as outras mulheres... todas as outras mulheres que encerravam o vulto de Cármen. Cármen soube como nenhuma outra, despertar um espírito eternamente hibernado para a arte dos afectos violentos. Fora um amor de paixão à cova.
Rendido ao luto, Abel esquece o tempo e os sons que o rodeiam, e os odores e as angústias asfixiantes. A linha do horizonte trespassa a sala mas Abel não teme o destino incerto. Por certo no próximo amanhecer, estará com Cármen e nada mais importa. Assenta os olhos em Caim e numa última golfada de esforço pergunta: "Para onde vai a luz quando tudo se apaga?".
Entediado, o Dragão de Comodo peida-se e o prédio desmonora-se.

Blueminerva - http://perolasnocharco.blogspot.com

10 criaturas afundaram esta pérola:

João Roque disse...

Um enorme e sincero abraço de parabéns por este texto, talvez o mais difícil de todos, porque era o último.
Brilhante o conjugar de conteúdos anteriores e desfecho excepcional.
Sinto-me muito honrado por ter dado a minha pequena colaboração neste jogom, e também está se parbéns, é óbvio quem lhe deu início,o Ypslon.

Acho que vou voltar mais vezes...

Anónimo disse...

:) muito bem!!

Rocket disse...

belíssimo!
em tão poucas linhas tanta coisa bela e inédita...
espero que esta não tão fácil experiência (agora que terminou posso falar assim) te tenha sido útil... a mim foi, já te conhecia o dote da escrita e agora o de uma imaginação riquíssima e de delicado humor...

"Para onde vai a luz quando tudo se apaga?"...

que ninguém me responda como o dragão de comodo... brilhante!

beijos e obrigado

Leonor disse...

Muitos parabéns.
Um grande final para uma história que não se afigurava mesmo nada simples.
Fabuloso, aliás, à semelhança do antecessor, cheio de referências fantásticas e um desfecho surpreeendente. Que grande imaginação ... Beijinhos e renovo os parabéns.

Miguel Noite disse...

Lindo!
Este texto não poderia ter um final melhor! O Dragão peida-se... :D adorei!

Su disse...

gostei de ler..te

obvia...imaginação


jocas maradas de palavras

Blueminerva disse...

Antes de mais, gostaria de congratular o ÿpslon pelo magnífico desafio lançado e dizer que foi um enorme prazer ter participado nesta corrente... devo-o ao querido Rocket que ao invés de escolher o Pacheco Pereira (esse guru da blogosfera nacional) optou por me convidar a mim.
Foi complicado, pois claro, mas foi prazeroso. Tentei acima de tudo incorporar os vários elementos dos anteriores textos, manter a coerência e proporcionar um desfecho.
A todos vós, um arquipélago de abraços

Maísa disse...

Pois somente te digo:
Parabéns.
Foste brilhante.
Adorei.
Beijinho.

Anónimo disse...

Olá
Adorei o final... Acabou por ficar uma história digna de W. Allen.
parabéns.

Anónimo disse...

Toda a história foi extraordinariamente bem escrita. Aos desafiados os meus parabéns.
Srª Blue, igual a si própria, irrepreensível, é sempre um prazer lhe ler.
Joel Barbosa